UtupiAR: é urgente!

quarta-feira, maio 17, 2006

2 de Abril - domingo



Este Domingo fui pela primeira vez visitar um lugar que já o deveria ter conhecido à imenso tempo (dadas as recomendações de amigos e pessoal do GAIA): Can Masdeu (www.canmasdeu.net). Uma casa okupada a 1km (aproximadamente) da cidade, mas com características bem peculiares. Depois de andar sensivelmente 15 minutos a pé desde o metro, entrei num autêntico mundo a parte! Uma montanha de onde se via muito bem Barcelona e os seus inúmeros prédios e construção desorganizada (porque tirando o centro e a zona do Eixample, o planeamento e construção parecem caóticos). E que segundo nos foi explicado, aquela área da serra da Collserola (onde nos encontrávamos) era como que uma ilha verde de Barcelona e da sua área metropolitana, já que ao redor, mesmo as montanhas já começam a ser bastante urbanizadas.
À medida que me aproximava da área da casa o meu espanto aumentava: eram 11h da manhã e havia por ali muita gente, ora velhinhos, ora crianças, ora jovens de mochila de campismo às costas, ora adultos de bicicletas. Uma pequena encenação nos brindava à entrada: uma mesa com umas bolachinhas e muita papelada, um computador (a fazer de conta), um jovem engravatado atrás da secretária, outro em pé ao seu lado sorrindo para as pessoas que se aproximavam curiosas; ao lado deles, um painel com uma fotografia (não da casa okupada mas de uma casa grande que se vê ao lado que é uma dependência construída por um hospital público de Barcelona mas que nunca foi utilizado) e várias setas que indicavam “piscina”, “sauna”, “parque de estacionamento subterrâneo”, “ginásio”... Outro painel indicava os apartamentos ainda disponíveis para compra.
Faziam uma ironia ao facto da câmara querer urbanizar o vale, de quase inevitavelmente e como eles bem dizem “puxarem” a cidade para a montanha, em vez de “baixarem” a montanha à cidade (ao invés de mais áreas verdes, mais betão; infelizmente a política de muitas cidades parece ser esta); e já que há indícios que a câmara quer dar uma utilidade ao tal edifício do hospital (sem uso durante 50 anos), provavelmente encarregando uma empresa privada dessa concessão, os jovens ridicularizavam a situação, criando a imagem de um centro comercial e urbanização de luxo, cujos relações pública da empresa estavam de momento a promover. Foi com esta deixa que criaram ali uma interacção fantástica com os visitantes, que eram muitos: na rota guiada pelo vale éramos mais de 50 e durante o dia todo passaram por lá mais de 300 pessoas! Ligavam a parte da brincadeira (da tal ironia) com uma parte mais séria, de um lado os representantes da empresa imobiliária (personagens representadas pelos okupas) e do outro os jovens okupas (que se encontravam num plano de re-inserção social ;)
A rota passava por vários pontos chaves onde outros jovens da casa nos falavam de algum projecto em especifico, como as meninas do projecto da educação ambiental que nos explicaram como funciona esse projecto: grupos de crianças ou jovens contactam a CanMasdeu e fazem uma visita às hortas comunitárias, experimentam plantar, aprendem o ciclo da água, conversam sobre energias renováveis...
Noutro ponto mais adiante, uns “pássaros” pediram a nossa colaboração para ajudar a limpar a área, já que nós humanos a sujamos quando vamos para essa zona verde passear e picnicar!
Depois da visita animaram as crianças (e os mais graúdos, claro) com música (até um palco tinham, microfones e material de som) e danças colectivas. E enquanto se esperava pela calçotada (finalmente ía experimentar os famosos calçots!) podia-se ir petiscando na banquinha ecológica que se encontrava mesmo ao lado, onde vendiam sumos biológicos, cerveja artesanal (feita por eles), bolinhos e outros petiscos.
Algumas pessoas (como eu) consultavam atentamente o material disponível numa amostra da biblioteca que se encontrava cá fora, distribuído por 2 mesas, assim como uma mesa com panfletos e outro material de divulgação e outra com produtos para venda e um banco de sementes (onde o objectivo é preservarem-se sementes locais e antigas, com base na sua distribuição). A rapariga que se encontrava a “guardar” este espaço, era uma verdadeira relações públicas, falando com as pessoas que se aproximavam, explicando os projectos, perguntando se tinham alguma dúvida...

À hora marcada lá começou a calçotada (com um preço justo) e eu adorei os calçots e aquele ambiente todo: toda a gente ali sentada na relva, em amena cavaqueira, jovens e velhinhos, tocando música e dançando. Depois da calçotada quem quisesse poderia ver um video da assembleia de vizinhos do bairro de Canyelles e a sua luta com a câmara de Barcelona. Pois esta não foi capaz de defender os interesses dos moradores face aos interesses de uma empresa de construção imobiliária. E assim, aqueles reuniram-se em assembleia para ao fim de 6 anos, conseguirem as habitações a que tinham direito, embora tenha sido um processo difícil pois depois de 40 anos de ditadura é difícil as pessoas juntarem-se assim e falarem directamente sob um assunto que lhes preocupa, como contou a porta-voz da assembleia. Lembro-me de algo que esta disse que ficou na minha cabeça no decorrer do filme: quando fizeram o sorteio dos andares, a assembleia de moradores sugeriu que se realizassem dois sorteios, primeiro os andares que se encontravam no rés-do-chão ou primeiro andar que seriam sorteados só entre os mais velhos e/ou pessoas com mobilidade reduzida e depois outro sorteio para os restantes apartamentos e famílias. Ou seja, a assembleia teve em conta a facilidade que estes grupos de pessoas teriam se morassem mais perto do exterior, onde não teriam que subir escadas ou caminhar tanto. A câmara não se tinha lembrado de tal coisa. Aqui é demonstrado claramente que a auto-gestão é algo que faz sentido, que a gestão de algo pelos próprios que o usam ou vão utilizar é o mais correcto. Dado que além de mais verdadeiro, é mais rico. Se é certo que 3 cabeças pensam melhor que uma, também é certo que 100 cabeças pensam melhor que uma, embora a dificuldade que isto possa trazer. Tal como neste caso, quando mais pessoas pensam sobre algo é maior a probabilidade de boas ideias surgirem ou tocarem-se em pontos de que outra forma ninguém se lembraria. É assim um trabalho mais rico. E sincero, porque quem melhor conhece os seus problemas e necessidades do que as próprias pessoas? Não digo que não deva haver “técnicos” nestas “discussões”, até porque trazem uma visão “de fora” que pode ser importante, mas não devem ser apenas estes a decidir as coisas, como acontece na maioria dos projectos camarários, em que opiniões de arquitectos e outros profissionais contam mais que as das próprias pessoas que conhecem o local e o usufruem.

A seguir teve lugar a assembleia cujo tema era “Que queremos para o hospital abandonado?”, assembleia preparatória onde o objectivo era recolher ideias para aquele edifício enorme sem nenhum uso e em vias de ser privatizado, a não ser que ou: a) se fizesse um projecto forte, capaz de fazer com que a câmara cedesse o espaço à população como equipamento cultural e esta o pudesse auto-gerir (à semelhança dos feitos conseguidos pela Coordenadora Nou Barris – como o Ateneu Popular Nou Barris – com cujo apoio poderiam contar) ou b) se ocupasse totalmente o edifico de forma espontânea, sem dar explicações à câmara. Para ambos os casos, é preciso existirem ideias concretas em relação ao uso do edifício e foi isso que se teve a discutir: um espaço para idosos (já que há muitos no bairro vizinho), uma escola com pedagogias alternativas, uma cooperativa de habitação... No final, bailarico, onde uma senhora vizinha das hortas comunitárias, ensinou algumas danças tradicionais europeias e espanholas.
Estava tudo de facto bem organizado!

Falando um pouco mais sobre o projecto global da okupa e do que aprendi lá, a casa era uma antiga leprosaria, que também esteve abandonada mais de 50 anos, e que no final de 2001 começou a ser recuperada por um grupo de jovens, não só a casa, mas todo o seu envolvente, onde descobriram uma mina abandonada e reabriram os caminhos para a água. Alguns vizinhos do bairro mais próximo começaram a participar no cultivo da terra e assim em Setembro de 2002 surgiram as hortas comunitárias, onde em assembleia cerca de 80 pessoas repartiram as parcelas de terra como quiseram (ora um pedaço pertencia a uma família, ora outro pedaço pertencia a um grupo de mulheres, ora um pedaço aos jovens da okupa....), como bem nos explicarem 3 vizinhos que trabalham nas hortas, onde o único “requerimento” dos jovens okupas era que a agricultura praticada fosse biológica e que se reunissem em assembleia mensal para gerirem os recursos de forma comunitária.
Na casa vivem de momento 29 pessoas, mas enche-se de gente quando abre como centro social todas as quintas e domingos (só fecha mesmo no Natal e em Agosto e Setembro), com o bar ecológico RurBar, com a rota pelo vale, com a loja grátis (uma espécie de loja de roupa 2ª mão, mas onde a roupa não se compra, mas oferece-se), biblioteca onde encontramos o Centro de Documentação (livros, dossiês e revistas, que podes levar para casa durante 1 mês) e a oficina Rurbana (informação sobre alternativas no meio rural), a Distri Rurbana (venda de livros, cd’s...) e “Produtos para auto-renda” (produtos que eles próprios fazem, como sabonetes, chocolate...), cujos fundos destes dois últimos revertem para a organização das actividades e mantimento da casa.
Além destes espaços da casa que estão à disposição de todos, do projecto das hortas comunitárias e do projecto de educação ambiental, a Can Masdeu tem também um projecto chamado GACs (Grupos de Auto-aprendizagem colectivos) onde várias pessoas (que habitam na okupa ou não) se reúnem às quintas ou domingos para aprenderem de forma partilhada vários labores ou temas. De momento, há grupos que estão a aprender a fazer pão e a trabalhar na horta, há um circulo de mulheres, um grupo de contacto-improvisação (espécie de dança experimental), há uma oficina de auto-reparação de bicicletas, uma oficina de cerveja artesanal e um grupo que cultiva spirulina. Claro que estão abertos a mais propostas!

O mais impressionante deste dia foi a quantidade de pessoas que lá estavam e que conheciam o projecto!! E o ver que todos o apoiavam e embora com estilos de vida diferentes (no meio urbano) também era aquele o que desejavam.
Foi exactamente isso que senti, que é isso que desejo, mas como isso já o sabia, o importante foi sentir mais uma vez que o que sonho é possível, que as utopias estão mais próximas do que aquilo que se imagina. É o colocar em prática de tudo (ou quase tudo) aquilo em que acredito. É que fazendo parte do movimento ecologista, de estar familiarizada com compostagem, construção ecológica, agricultura biológica e bla bla bla bla bla bla, mas não praticar tudo isto, é muitas vezes muito frustrante. Ali eles faziam as duas coisas: tinham esta vertente prática, mas também a mais teórica, digamos, já que além de viverem muito perto da cidade e de muitos deles estudarem e trabalharem nela, as pessoas da cidade também vêm ao “campo” e aprendem com eles, tanto em debates e palestras que lá se organizam, como na participação das oficinas. É a teoria junto com a prática. É a construção de uma alternativa viva ao capitalismo sem escrúpulos que se vive lá em baixo na cidade. É uma resistência que resiste, embora com dificuldade, mas com apoio por parte de muitos. É aquilo que muitos querem fazer mas não têm coragem devido às imensas pressões sociais e familiares.
Vim de lá mesmo entusiasmada, mais confiante nos meus sonhos (e nos de muitas pessoas), e com mais vontade de voltar para Portugal e partilhar tudo isto, confesso. Mas cada coisa a seu tempo, e por aqui vou tentar conhecer mais projectos do género para aprender com eles.

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