UtupiAR: é urgente!

sexta-feira, março 17, 2006

1 de Março - quarta-feira


Sempre que vou à biblioteca dou uma olhadela na prateleira dos dvds, pois lembro-me que a minha lista de filmes a ver tem uns bons (presumo) filmes espanhóis. Ao mesmo tempo também é uma maneira de aprender a língua.

Ontem encontrei um, que apesar de não pertencer a essa lista, parecia bastante interessante: “!Hay motivo!“ (www.haymotivo.com) um filme de vários autores. Na sinopse lia-se: “!Hay motivo! é um alerta, é uma chamada de atenção que 33 realizadores de cinema realizam com a intenção de denunciar a situação política e social que se viu especialmente deteriorada durante a Legislatura transcorrida entre o ano 2000 e 2004. É um filme composto por 32 curtas metragens, de cerca de 3 minutos cada, mais um epílogo.”

Quis ver este filme essencialmente porque pensava que me poderia mostrar um lado mais “negativo” de Espanha que talvez não seja tão visível aos meus olhos neste momento. Só que claro, o governo passou de um partido extrema direita como o PP para um partido socialista, e claro que as coisas devem estar bastante diferentes agora. No entanto, há aquelas que mantêm iguais. Porque não as querem mudar, porque são difíceis de “remediar”, levam o seu tempo, e porque algumas são até “problemas” que ultrapassam barreiras e fronteiras, como a violência doméstica ou a solidão nos idosos. Além do mais, tudo o país tem o seu lado negativo, o seu lado “escondido”, o seu lado que não passa facilmente para fora, por mais “bem visto” que seja. Também podemos falar do que eu costumo chamar de “escalas de avaliação”. É que a maneira como avaliamos as situações tem muito a ver com ambição. E como seres humanos ambiciosos que somos, queremos sempre mais. Então, se para uns estamos muito bem, para nós mesmos podemos estar muito mais, porque somos exigentes e tentamos sempre ver o lado negativo das coisas. É como se a escala de avaliação tivesse tamanha diferentes dependendo da maneira como cada um percepciona as coisas. Cada um cria a sua escala. Eu cá gosto que a minha escala seja flexível e de compreender e ficar mais perto de escalas de outros por momento. Agora é a vez de ficar mais perto da escala de avaliação de muitos espanhóis.

No final, o filme motivou-me para querer saber mais acerca da situação política de Espanha actualmente. E como funcionam em relação às regiões autónomas, se são de partidos diferentes, etc.

Falando das curtas-metragens em si, algumas apresentavam dados assustadores, outras eram mais poéticas, outras extremamente simples, outras mais complexas. Por ordem cronológica, vou escrever apenas sobre as que mais gostei ou que de certa forma captaram a minha atenção e a da minha caneta e bloco de notas!

A primeira era a “Libre” de Joaquín Oristrell, uma viagem de taxi onde o cliente conversava com a taxista sobre a situação política e social do país. Era como uma introdução que nos dizia exactamente que nem tudo está bem, ou que tudo está negro (para os mais pessimistas).

Outras eram mais de carácter ambiental como a curta de Pere Potabella – “El Plano Hidrológico” – que explicava a diferença entre água-vida e água-negócio. Destaco por exemplo uma frase que diz algo como “como se diz a uma população de uma aldeia na montanha para abandonar as suas terras em solidariedade com os negócios urbanísticos”? Isto leva pensar em muitas coisas. Será que a construção de barragens e mais barragens, por ex., dá-se devido a necessidades humanas ou devido à avareza e ambição dos ricos? Lembro-me por exemplo da barragem que querem construir no rio Sabor em Portugal, destruindo assim um dos últimos rios selvagens de Portugal.

Também posso referir aqui a curta “La Pesadilla” de Álvaro del Amo sobre uma das maiores reservas naturais de Espanha, Donana, e a sua progressiva destruição.

“Cerrar los Ojos” (David Trueba) é daquelas simples. Só nos diz “Espanha é o país com maior quantidade de dinheiro negro em circulação.”

“¿Dónde Vivimos?” de Gracia Querejeta, também simples mas mais difícil de digerir: imagens de prédios a desmoronarem, mas sem parar. Era uma espécie de manifesto contra o betão ou manifesto contra a especulação imobiliária. Tanta coisa construída a ser destruída lembra-me todos os recursos que foram utilizados e então desperdiçados. Tanta coisa que tiramos da Natureza e não devolvemos, pelo contrário, retribuímos com lixo, com destruição.

“La insoportable levedad del carrito de la compra”, de Isabel Coixet, foi uma divertida curta onde um sem-abrigo (penso eu) nos fala dos problemas económicos dos reformados em Espanha, começando por dizer que agora vê mais avózinhas com o cabelo branco o que significa que não têm dinheiro para pintá-lo. Para um tom mais sério, alguns números são dados ao espectador: 3 em 4 reformados recebem menos de 600€ por mês; 800 mil mulheres recebem reformas inferiores a 400€; os reformados perderam 28% de poder de compra em 4 anos; foram visto tomates a 7€ o kilo em vários mercados do estado espanhol; e acaba em tom de brincadeira “não há dados sobre o aumento de mulheres idosas que deixaram de pintar o cabelo, mas eu vejo cada vez mais mulheres com o cabelo branco”.

Ainda sobre os idosos, “Soledad”, de José Ángel Rebolledo, apresentava-nos uma personagem só, terrivelmente só. Uma senhora de idade que vive sozinha e triste desde que o marido morreu, há 10 anos. Não é a única, em Madrid, no ano de 2003, 115 velhinhos morreram em completa solidão. Será que em Portugal o valor é também assim tão elevado? Fiquei bastante admirada!

Há ainda os temas mais polémicos, como a adopção em casais homossexuais, que vemos abordada na curta-metragem de Sigfrid Monleón “Adopción”. Existe um pai e um filho biológico, que não tem mãe. Existe o companheiro do “pai” que vivem juntos há 18 anos e cuidam juntos da criança. A pergunta que o filme nos deixa é “porque é que esse homem não pode ocupar legalmente o lugar de mãe?”. Em Espanha, faltam dados sobre quantas crianças vivem nesta situação (mas crê-se que são muitas), mas têm de gozar dos mesmos direitos que outras. Deixa-nos ainda a achega que as novas tipologias de famílias que surgem podem ser uma solução para milhares de crianças sem família. Eu cá concordo plenamente. A nossa sociedade é que parece ter palas à frente dos olhos, e teimar em ver as coisas só de uma maneira, a de sempre. É que ao longo da histórias existem vários exemplos de família e a que nós concebemos não tem de ser a mais correcta. Há famílias poligâmicas, homossexuais, etc. Nós insistimos na monogâmica e heterossexual porque foi sendo o mais comum. No entanto, se existem outras hipóteses, há que aceitá-las.

“Por tu bien” de Icíar Bollaín, só mesmo visto! Um Homem a ter um bébé. Tudo para nos demonstrar a desumanização dos partos nos hospitais.

Ainda sobre mulheres, temos a curta “El club de las mujeres muertas” de Víctor Manuel, bastante perturbante. Em 2003, 68 mulheres morreram devido a maus tratos, mais 30,7% que no ano anterior. Não fazia ideia que o numero fosse assim tão elevado, imaginava que maus tratos eram imensos mas que chegavam a morrer assim tantas nunca pensei. Será que em Portugal o número é também bastante elevado?

O filme ”Hay Motivo!” parece abordar vários questões sociais e grupos diferentes. Os “Adolescentes” (realizado por Chus Gutiérrez) também têm lugar. Falam sobre a escola obrigatória e dos professores que não motivam e como gostavam que houvesse uma relação mais de apoio e ajuda. Tive alguma dificuldade em perceber tudo porque o calão era muito. Há 29% de desistência da escolaridade obrigatória. E Espanha é o país que menos gasta por aluno em educação. Um professor também falou, dizendo que os professores não têm uma boa formação. 84% das doenças de professores são problemas psicológicos ou psíquicos. Nesta película achei curioso o facto de uma rapariga referir que na zona onde vive e vai à escola não há nada para fazer, então as drogas são a única novidade e uma maneira de fugir à rotina. Já se sabe que os jovens gostam e querem sensações novas, mas a oferta não é muita. Depois admiramo-nos do aumento do consumo de drogas nos jovens.

“Se vende colegio” (Pedro Olea) e “Catequesis” (Yolanda García Serrano) falam-nos da religião, dos estados que se dizem laicos, mas que apoiam actos mais obscuros.

Víctor García León apresenta-nos “Las barranquillas”, um bairro degradado nos arredores de Madrid. Extremamente sujo, pobre, feio, onde vemos bastantes toxicodependentes. Um trabalhador social fala, dizendo que as campanhas do governo são mais dirigidas para quem não consome. Quem consome fica à margem.

“Madrid, mon amour“, de Ana Díez e Bernardo Belzunegui, surge como uma curta-metragem peculiar. Uma visão de Madrid poética, e uma visão “negativa”. Uma visão que vê o que é bonito, uma visão que mostra o que está mal.

A partir desta curta todas as outras abordam directamente o governo e a política, falando de partidos, personagens, etc., o que fez que não percebesse tudo pois não conheço bem a historia e contextos políticos de Espanha.


Miguel Ángel Diez com a “Arma de destrucción mediática” e Imanol Uribe com “Manipulación” demonstram-nos como a informação pode ser manipulada e como existem imensas conexões entre os média e o governo.

“Verja” (Alfonso Ungría) é sobre Ceuta e os seus refugiados. Em 2001/2003 pedem asilo 20.964 pessoas. A 19.217 pessoas foi negado asilo. E 53,607 foram interceptadas na fronteira. Mortos e desaparecidos foram 468 pessoas, mas o número deve ser muito maior. A curta-metragem termina com uma respiração ofegante até que alguém diz “por favor, tenho fome, tenho medo, posso passar?”.

“Español para extranjeros” de José Luis García Sánchez, também é sobre imigrantes. Achei esta película bastante bem construída.

Começa com um barco pequeno a motor, com “refugiados”, e continua com imagens do dia-a-dia de refugiados em Espanha. Como contraste, temos vozes que nos lembram o dia a dia de um turista em Espanha: “Benvindos a Espanha, o motivo da sua viagem é de negócios ou de férias?”, “O que vai desejar para o almoço?”...

Mostra-nos assim de uma maneira crua e dura diferenças entre estrangeiros ricos e pobres em Espanha, terminando com a frase: “O ano passado localizaram-se 92 cadáveres de imigrantes. Os mortos reais foram provavelmente muitos mais”.

Em “¿Legalidad?” (Daniel Cebrián) ouvimos uma criança dizer: “Nada pode ser privado da sua liberdade”. Depois uma menina islâmica, imigrante em Espanha, conta o caso do seu irmão, também imigrante, que está preso em Guantânamo. Intercaladamente, imagens da base militar americana, de uma senhora a explicar o que se passe a nível de violação de direitos humanos e noticias de jornais.

Na pequena sinopse de “La pelota vasca” de Julio Medem lê-se: “Medem não aprende. Segue perigosamente empenhado em que as pessoas digam o que pensam. Como se a falar é que nos entendêssemos.”. Várias pessoas falam da situação de repressão do povo basco. “Kontrastasum” de Mireia Lluch, também era sobre os Bascos, mas desta vez com poesia e versos.

Houve uma altura que tinha bastante curiosidade sobre os bascos, procurava informação na Internet e sempre que conhecia espanhóis (quando estava em Erasmus, principalmente) perguntava o que achavam dos bascos. Com a informação lida na Internet fiquei com a ideia que os bascos são um povo muito peculiar, com características muito próprias. A língua, por ex., não tem mesmo nada a ver com o castelhano, nem com nada; não tem mesmo raízes semelhantes com outras línguas latinas ou anglo-saxônicas. À partida, isto parece não trazer qualquer confusão, só que o problema é que essa cultura peculiar está a ser “abafada” pelo resto de Espanha, segundo alguns. Quando uma cultura começa a ser submissa de outra ou mesmo a ser reprimida temos aqui um caso sério, digamos, é que há diversidade quando se consegue que culturas interajam e convivem, mas não quando uma se sente fraca. Aos poucos, vai-se perdendo e perde-se também um pouquinho mais de diversidade e riqueza cultura de um país.

No entanto, também ouço falar da ETA e dos partidos violentos que queria a independência do País Basco. Ao mesmo tempo que acho bem as pessoas organizarem-se (mesmo económica e politicamente) por grupos de afinidade (neste caso, a cultura e a língua podiam ser um deles), acho mal o uso da violência e não sei até que ponto é que os bascos querem mesmo a independência ou apenas a querem um grupo bastante convicto. Além do mais, faz-me confusão a criação de ainda mais fronteiras.

Concluindo, tenho de falar é com mais bascos, porque assim é que a gente se entende, tal como quer Medem, que por sinal é um dos meus realizadores favoritos.

“Cena de Capitanes”, Pere Joan Ventura, nesta curta os pescadores defendem o capitão do Prestige que estava a ser acusado embora não tivesse a ver directamente com o derrame, sendo apenas o capitão do barco, segundo o pouco que consegui perceber.

Também sobre o Prestigo, “Mayday”, de Manuel Rivas, desta vez dando especial enfoque ás manifestações que surgiram em toda a Espanha com uma força incrível. Para além da beleza que constituem, para mim, as manifestações no geral (pela visão das pessoas unida, juntas, concentradas, pela mesma causa, embora com a individualidade de cada um), a imagem destas foi particularmente bela dado que era um dia de chuva, mas mesmo assim o número de pessoas era bastante elevado e a quantidade de guarda-chuvas também. Mais do que a beleza da imagem, era o facto de me fazer pensar que os Espanhóis são muito mais activos e reactivos do que os portugueses. Acho que em Portugal, se está a chover, já é “desculpa” aceite para ficar em casa.

O Epílogo é de Diego Galán e é como se torna-se óbvio o que parecia querer dizer toda a película: que Espanha não votasse no Partido Popular, que não votasse no Aznar. É uma espécie de retrospectiva que começa com uma referência ao dia 3 de Março de 2003 e à declaração da guerra ao Iraque por parte do Bush, Blair e Aznar. Em Espanha, 3 dias antes das eleições gerais, no dia 11 de Março de 2004, ocorreu o tal ataque num comboio em Madrid, cujas primeiras suspeitas recaíam sobre a ETA. Apesar de as “investigações” apontarem para Al Quaeda, o governo continuava a insistir na ETA. Isto porque se o ataque terrorista fosse da Al Quaeda, os espanhóis teriam mais uma razão para não votar Aznar, dado que quis a guerra e agora Espanha estava a sofrer as consequências. Houve uma tentativa de manipulação por parte do governo, o que conduziu a grandes manifestações por toda a Espanha, principalmente Madrid, um dia antes das eleições, onde todos gritavam “antes de votar, queremos a verdade”.

Porém, o governo de Aznar continuou a afirmar que tinha sido a ETA, quando muitos indícios apontavam o contrário. Claro que perdeu, dando a vitória ao Partido Socialista.

No fim, os agradecimentos e as notas típicas de qualquer filme. No entanto, a diferença é que fizeram notar que muitos nomes não figuram devido a possíveis represálias. “Hay motivo” para pensar, não?

Hoje os nossos primeiros amigos espanhóis de Barcelona, aqueles do Hospitality Club que nos alojaram na primeira semana, cancelaram à última da hora o jantar que tínhamos marcado. A Marlene ficou fula já que tinha estado a cortar batatas e cenouras para o jantar!!

À noite, eu, a Marlene e o P. (holandês que vive connosco) até à Praça da Concórdia (que por sinal é das minhas praças favoritas daqui de Barcelona) relativamente perto de nossa casa, para assistirmos ao último dia de Carnaval! Organizado pelo Centro Cívico Can Deu (aquele muito bonito) e pela Comissão de Festas do bairro, como nos explicou a senhora simpática do centro que nos reconheceu e foi ainda mais simpática, e financiado pela câmara. Sardinhas em cima de um pão foram servidas (parece ser um prato típico daqui, parecem pizzas de sardinha!), a praça estava animada (mas não com muita gente) e um espectáculo de teatro e fogo foi “oferecido”. A mim encanta-me ver espectáculos com fogo, apesar de me assustar um bocado e de não conseguir deixar de pensar no insustentável que aquilo deve ser (poluente, perigoso e de certa forma desnecessário). Mas todas aquelas cores, movimentos, sons, formam um todo delicioso de ver. Mantém os olhos abertos, vivos e despertos.